Ter filhos
Ter muitos filhos não é uma aventura, é mais uma viagem sem
programa definido. Igualmente cansativo e imprevisível.
Ter filhos é uma aventura. Ninguém está preparado para ter
filhos. Nós sabemos montar os móveis do Ikea, fazer currículos europeus,
trabalhar em Excel, cozinhar na Bimby, escolher os melhores andróides e iPads,
mas ter filhos não. Não estamos preparados. É uma enorme complicação. Não tem
nada a ver com a simplicidade que é montar um beliche do Ikea. Ter filhos não é
uma coisa previsível: por mais que se programe há sempre imprevisibilidades,
faltam sempre parafusos. E nós não gostamos disso. Detestamos o imprevisível, a
nossa vida não se presta a ter surpresas. Não temos tempo nem disponibilidade
emocional para isso.
Quando programamos as férias ou compramos um armário fazemos
tudo muito certinho. E se as coisas não correm como tínhamos planeado, na pior
das hipóteses reclamamos o dinheiro ou devolvemos o armário, mas há sempre a
possibilidade de voltar atrás. Com os filhos não há essa possibilidade: além de
não sabermos como vai ser, não podemos voltar atrás. É para a vida, até que a
morte nos separe. Com ou sem parafusos, é para sempre.
E nós não gostamos de coisas para sempre e que, ainda por
cima, não são previsíveis. Assusta-nos. É tramado pensar que não podemos
programar a vida dos nossos filhos da mesma forma que fazemos um bacalhau com
natas na Bimby, em que basta seguir o livro de receitas à risca para sair tudo
certinho. Com os filhos é tudo a olho, não sabemos os tempos, a velocidade,
nada. Não há livro. É um tiro no escuro. Muito mais escuro e indecifrável que o
discurso de político atual.
Por isso é que ter filhos nos dias de hoje é uma aventura. É
uma espécie de desporto radical. Não é que dantes os filhos fossem diferentes -
eles continuam imprevisíveis, nós é que estamos diferentes. Somos mais
complicadinhos. Gostamos de programar, de planear, de calendarizar, de
prevenir. Medimos os prós e os contras ao detalhe e não gostamos das variáveis
nas equações. Detestamos variáveis. É como a "tarde livre" nas
viagens de grupo: ficamos sem saber o que fazer para preencher a tarde e acabamos
no bar no hotel à espera de novas ordens.
Ter filhos é por tudo isto considerado um acto de heroísmo.
E quanto mais filhos se tem mais lunático e corajoso se é. Quem, por exemplo, vai
a caminho do sexto, já ninguém dá os parabéns. Não se dá os parabéns a uma
pessoa que tenha seis filhos. Fazem-se antes perguntas. Há uma quantidade
enorme de perguntas a fazer. Uma pessoa assim é uma espécie de curiosidade,
devia estar no circo. Como é que se distribui o tempo entre todos, como é que
se concilia a vida profissional com a criançada, como é que se estica o
orçamento, como é que se tem paciência, como é que se transportam as
criancinhas? E a mais importante de todas: porquê tantos filhos?
Ora bem, não há resposta para nada disto. Eu não faço ideia.
As crianças sobrevivem, eu também e isso já é uma vitória. Ter muitos filhos
não é uma aventura, é mais uma viagem sem programa definido. Igualmente
cansativo e imprevisível. Mas já que se viaja, que valha mesmo a pena. Para se
ficar no bar do hotel mais vale ficar em casa.
Se ter filhos já é épico, ter muitos é irracional. Não há
razão que justifique tal aventura.
# Jr.
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