Pela primeira vez, vi o mar...

«Porque cada homem constrói o seu futuro»

     Pela primeira vez, vi o Mar. Tinha acabado de ter uma daquelas lânguidas e infrutíferas discussões com a Irmã Maria do Carmo. Vivo com ela, juntamente com mais umas tantas ‘Irmãs’ nesta Instituição Social, desde que os meus pais faleceram à um par de meses atrás. Ainda não consegui superar bem essa ‘coisa’ a que chamam de perda. Estas saudades de acordares de manhã e saberes que não tens uma figura maternal nem paternal para te dizer um simples, mas reconfortante, ”Bom dia, filho’’. Acordares de manhã e não haver aquela discussão do saboroso “Despacha-te lá! Há mais pessoas a precisarem de ir à casa de banho”. Sais da escola e parece que toda a gente tem os pais à porta. Tu tens o motorista, que também é o jardineiro, canalizador, homem-de-recados,  pintor e fiscal de dormitório da Instituição. Os outros fecham a porta do carro em que entram, tu tens o motorista que ta fecha, como aquelas carrinhas dos presidiários. Começei a aperceber-me de que quando deixamos de ter uma coisa básica, começamos a reparar que essa coisa é comum a toda a gente, e a tristeza de não a poderes alcançar torna-se profunda.

     A rotina, é sempre a mesma regra enfadonha do ‘deitar cedo e cedo erguer’. As Irmãs fazem questão de dizer isso o mesmo número de vezes que dizem uma oração qualquer. Estou farto de aqui estar. É monótono e enfadonho. Por isso, depois da tremenda discussão que resuscitou metade das freiras dos seus aposentos na noite passada, decidi ir ver o mar.
Fui em busca de consolo, em busca daquela estrelinha, a mais brilhante de todas, aquela que pudesse colocar algum calor, mínimo que fosse, no meu coração. Aquela que me pudesse soprar ao ouvido «Bom dia, filho». Essa mesmo. Mas para variar, o céu estava nublado e o mar revolto. Nunca tenho sorte, nem para ver as estrelas. Revoltei-me. Chorei, chorei porque os homens também choram. Um torbilhão de sentimentos e emoções, esvoaçavam pela minha cabeça. Não sabia o que fazer, apetecia entregar-me ao mar, mas parece que também ele estava zangado comigo. Gritei com ele e perguntei-lhe o que é que ele queria, perguntei-lhe se não bastava eu ter o azar na vida que tenho, perguntei-lhe se ele, que tinha a fama de tirar a vida de pessoas inocentes também me queria. Ofendi-o, e parecia que estava a resultar, quanto mais o ofendia, maior era o tamanho da onda que vinha ávida de me buscar. Nisto, algures no meio entre o medo aterrador e o fascínio, parei para ver. Estava perto, já sentia a água a bater-me nos pés. Estava gélida como sempre. Comecei a dar um passo de cada vez e nisto só me lembro de sentir aquele estalar do frio nos tenros ossos.

      E foi aí que vi, foi aí que vi o mar. Imaginava-o diferente. Barbas brancas de espuma, e braços abertos vestidos de algas, pareceu que me queria abraçar. O pânico invadiu-me e as ondas que cresciam como adamastores na minha direção, tentavam-me levar para as profundezas da escuridão. Não tive outra alternativa senão mergulhar nessa alucinação tão real e sem medo. Deixei-me abraçar... um abraço em apneia pura, prolongadamente profundo. Num estado puro de maternidade, a água acariciava-me agora o rosto no mesmo instante em que me emergia e expirava na direcção do céu turvo. Os olhos com que vi, com espanto e ternura, eram os meus...bailando no espelho de água a cada movimento meu, meio céu e meio mar, a espuma agora confundia-se com as nuvens, até a estrela que procurava se esconder, e a lua aparece estendendo um lençol de luz branca como que iluminando o caminho para entrar no reino do mar…


     Vi-o pela primeira vez…  

Nota: A ideia base para este texto pertence ao Sr. Roberto Candeias, que escreveu o mini-texto mais bonito que li até hoje sobre o mar. Obrigado

#Evie.                                                       

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